A Revolução da Saúde Mental no Brasil e a Luta Antimanicomial

Olá! Que alegria ter você por aqui. Hoje, vamos mergulhar em um tema que toca profundamente a principal característica do que significa ser humano: o cuidar de si e do outro. A reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial no Brasil, um movimento de profunda transformação que, assim como a reforma sanitária, foi um pilar para a construção da nossa Constituição Cidadã de 1988. Se você deixar, eu vou facilitar essa jornada de entendimento, reflexão e, acima de tudo, de humanização. Tudo bem?

A Liberdade como Alicerce: Desconstruindo o Paradigma Manicomial

Por muito tempo, o sofrimento mental foi encarado como algo a ser isolado, contido, “eliminado” através de instituições totais – os manicômios. Pessoas que não eram toleradas por uma sociedade que gostaria de “limpar as cidades” eram enviadas para “depósitos locais” afastados, onde a liberdade era suprimida e a dignidade ignorada. Mas o Brasil, com sua rica história de movimentos sociais e pensamento crítico, emergiu como um dos grandes expoentes da reforma psiquiátrica mundial.

Essa reforma não é apenas uma mudança de leis; é uma verdadeira revolução! Ela questiona a própria base da nossa compreensão sobre a “loucura” e a saúde mental, sobre aquilo que não toleramos nos outros e em nós mesmos. Em vez de perguntar “como me livrar disso?”, passamos a indagar: “como cuidar de uma pessoa em sofrimento, em sua integralidade, garantindo seus direitos e sua dignidade?”. Passamos a ver o problema, uns ao lado dos outros, e não as pessoas como problemas.

A psicologia comportamental, em suas diversas filosofias – como a do behaviorismo radical e sua aplicação funcional – nos mostra que o comportamento, mesmo em contextos de sofrimento, é função de interações complexas com o ambiente. Entender os contextos que antecedem o comportamento e as consequências que o mantém é crucial para uma intervenção ética e eficaz, baseada no manejo cuidadoso dos desafios que dizem respeito à conviver com a diversidade.

O Desafio da Patologização e Medicamentalização: Um Olhar Comportamental e Ético

No dia a dia, somos bombardeados por informações, e o diagnóstico psiquiátrico, muitas vezes, é apresentado como a única resposta para o sofrimento. Vemos uma crescente medicalização da vida, onde fenômenos cotidianos – como tristeza, ansiedade ou dificuldades de adaptação – são rapidamente patologizados em classificações diagnósticas. Isso se reflete, por exemplo, na expansão da psicologização de experiências que são inerentes à condição humana. “Tudo vira doença”, indiscriminadamente.

Mas o sofrimento por vezes é real, e a ciência comportamental nos ensina a olhar para a função do comportamento. Um comportamento que parece “disfuncional” pode estar, na verdade, servindo para evitar um problema, buscar apoio de outras pessoas, acessar algo, ou como forma de se satisfazer.  Mas contextualizar não significa negar a importância do uso de algumas ferramentas quando necessárias. Pelo contrário. O uso racional de medicamentos é uma ferramenta valiosa na lida com o sofrimento intenso, especialmente em casos de maior gravidade. A Prática Baseada em Evidências (PBE) nos orienta a buscar as melhores pesquisas disponíveis e é uma das formas de evitarmos a medicamentalização da vida, já que à essas evidências associamos os valores da pessoa em tratamento e o saber técnico de quem o oferta. 

A Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) nos convida a aceitar parte da experiência humana, a da dor, e a nos comprometer com ações que estejam alinhadas aos nossos valores mais profundos. A autonomia do tratamento não é impor um caminho, mas sim, construir junto uma trajetória de cuidado a partir desses valores fundamentais e é combinando-a com a perícia clínica, os dados de pesquisa e, fundamentalmente, com as preferências e características do indivíduo que podemos construir uma prática baseada em evidências. Nesse ponto, a Terapia Baseada em Processo (TBP) é uma excelente lógica que nos ajuda a olhar para os processos subjacentes ao sofrimento e a organizar o mapa de tratamento.

A Força da Rede e do Território: Um Cuidado para Além do Consultório

A reforma psiquiátrica brasileira preconiza um cuidado que vai além das paredes do consultório e visa articular as maiores forças e potências que temos, para que os resultados do tratamento sejam mais rápidos e duradouros. Ela entende a importância da rede de apoio e da territorialização como formas de evitar a individualização de problemas que fazem parte de um todo. Nós não nascemos isolados do mundo e, portanto, o sofrimento mental também não ocorre no vácuo; ele é influenciado pelo contexto social, econômico, cultural e político. Pesquisas em neurociências, como as recentes sobre a neuroplasticidade e o impacto do ambiente no desenvolvimento neural, corroboram a interconexão entre cérebro, comportamento e contexto. Esse órgão complexo conta com áreas cujas interações são moduladas por experiências sociais e ambientais, impactando diretamente a regulação emocional e o comportamento adaptativo, por exemplo.

As ciências sociais e contextuais também nos lembram do impacto das normas culturais, bem como das mídias sociais no nosso bem-estar. As informações modulam a forma como interagimos socialmente e esse papel é reconhecido mas muitas vezes alardeado como se fosse o único pilar que direcionaria nossos comportamentos: quem nunca ouviu que a “mudança de mindset” poderia mudar também a nossa realidade que atire a primeira pedra. A Terapia Comportamental Dialética (DBT) se apoia em instrumentos valiosos como o mindfulness, através do qual podemos exercitar a tolerância ao sofrimento e a regulação emocional como um dos pontos estratégicos para o bem-estar, talvez algo como essa mudança, porém apoiada em outros fatores.

A dignidade no trabalho é outro ponto crucial, pois o ambiente laboral, as condições e as relações impactam diretamente a saúde mental. A reforma psiquiátrica entende que a cidadania plena inclui o direito ao trabalho digno e à participação social. Não é incomum vermos movimentos como o “Vida Além do Trabalho” estarem articulados a outras formas de garantia de direitos. Quem trabalha a partir da lógica da Atenção Psicossocial muitas vezes faz uso de “escrevivências” como o da Economia Solidária e da Economia Circular para se pensar em uma sociedade mais acessível e sustentável.

O SUS como Vanguarda: Um Olhar Humanizado na Prática

A beleza do Sistema Único de Saúde (SUS) reside em seus princípios de universalidade, equidade, integralidade e, agora, humanização. É a garantia de que a saúde, incluindo a saúde mental, é um direito de todos. As recomendações da OMS, PAHO e do Ministério da Saúde do Brasil convergem para um modelo de cuidado comunitário, focado nos direitos humanos e na prevenção e promoção da saúde. A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Carta Mundial do Direito à Cidade são algumas das bússolas que nos guiam, reforçando que fatores como o acesso à circulação e a construção dos espaços públicos, a uma moradia digna, à segurança alimentar e a um ambiente urbano comunitário são fundamentais para o bem-estar mental. A reforma psiquiátrica brasileira, que é um dos grandes avanços em saúde coletiva, busca desinstitucionalizar o cuidado, promovendo a liberdade e a autonomia através da corresponsabilização social no cuidado uns dos outros, por isso a participação e o controle social são fundamentais para assegurar nossos direitos. Por isso, um dos lemas do movimento da Luta Antimanicomial é: “Trancar não é Tratar”.

Uma História de Cuidado e Esperança: O Caminho de Maria

Permita-me compartilhar uma história, que embora fictícia, reflete a realidade de tantos caminhos de recuperação no SUS e em alguns consultórios, como o que eu trabalho.

Era uma manhã cinza, fria e chuvosa em Belo Horizonte. Maria, 38 anos, sentia uma inquietação e um peso insuportável no peito enquanto se arrumava para ir para o trabalho. Os últimos meses de extrema pressão e cobrança na entrega de uma nova tarefa trouxeram uma tristeza profunda que parecia não ter fim. Um turbilhão de pensamentos que não davam descanso e que logo acompanharam uma dificuldade enorme para dormir durante a noite tornaram difícil que ficasse atenta ao trabalho e trouxeram uma advertência quando foi pega cochilando exausta. Um sentimento de desistência com pensamentos que refletiam esse cansaço grudaram de tal forma na cabeça da Maria que ainda continuaram, mesmo depois da entrega da tarefa. Em um ato de coragem imensa, e lembrando-se de conversas sobre a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) com uma vizinha, no Centro de Saúde do bairro, ela decidiu procurar ajuda. Pediu para o chefe liberá-la pois iria ao SUS.

Chegou ao CERSAM (Centro de Referência em Saúde Mental) de sua região através do encaminhamento da enfermeira da equipe de saúde da família. No CERSAM, em vez de uma recepção fria ou uma imposição de diagnósticos, encontrou com a humanidade que a legislação atual do SUS preconiza. Uma equipe com uma psicóloga, um oficineiro e uma técnica de enfermagem a recebram e com um olhar atento e uma escuta que não tentava fazer com que sua dor acabasse logo para que o próximo entrasse na sala de atendimento, começaram o cuidado de Maria. Em vez de focar apenas no “problema”, eles perguntaram sobre sua vida, seus valores, sua rede de apoio e o que era importante para ela. Utilizando princípios da Psicoterapia Analítico Funcional (FAP), a psicóloga buscou entender os Comportamentos Relevantes que Ana apresentava naquele contexto, observando como o desamparo se manifestava ali, na própria interação.

Maria foi convidada a expressar seus sentimentos, por mais dolorosos que fossem. Houve uma aceitação genuína de sua experiência, sem que precisassem resolver, ou fugir, desse problema de imediato. Ao longo das semanas seguintes, com a terapeuta aplicando conceitos da ACT, ajudando-a a se distanciar de seus pensamentos mais críticos através de uma técnica simples, Maria pode refletir:
– Maria, isso que você está sentindo você já sentiu antes?
– Algumas vezes, principalmente quando via a minha mãe doente.

– E tiveram momentos em que esses pensamentos e sentimentos não estavam presentes, certo?

– Sim. Acho que a gente sempre vai ter alegrias mas não é justo ficar vivendo uma vida tão triste, sozinha…

– Maria, pode parecer bobo mas tem pensamentos que são como nuvens enquanto o pano de fundo da nossa vida é como o céu. Eles podem atravessar a gente e até ficar por mais tempo e fazer dias escuros, mas se a gente conseguir se lembrar da certeza que em algum momento eles vão passar isso pode deixar as coisas mais leves. Além disso, dias escuros são mais gostosos pra gente deitar embaixo do lençol vendo um filme, não é?

O acolhimento e a atenção imediata foram cruciais. A psicóloga utilizou estratégias da DBT, como o mindfulness, e ensinou Maria a focar na respiração para tolerar o sofrimento intenso do momento, discutiu pequenas estratégias de regulação emocional para o restante dos dias de tratamento no CAPS e reforçou que o espaço estaria aberto sempre que ela precisasse retornar, mas que acreditava que as amigas que Maira fez no serviço também poderiam ajudá-la no tratamento.

Maria se deu conta de que fazia um ano que havia perdido sua mãe, em um momento muito delicado não tinha reparado que se sentiu vulnerável e não tinha a quem recorrer. Após a crise inicial ser acolhida no CERSAM, foi encaminhada de volta ao Centro de Saúde de seu bairro, um ponto da Rede de Atenção Psicossocial mais próximo de seu cotidiano. Ali, a equipe multiprofissional regulou seu atendimento para o ambulatório de psiquiatria e psicologia, para manter uma atenção não intensiva durante os próximos meses e a incluiu no programa da Academia da Cidade para garantir que atividades físicas orientadas e em grupo pudessem ser um fator de proteção de possíveis recaídas. Junto disso, Maria frequenta o Centro de Convivência para eventuais atividades de lazer com as amigas que fez no CERSAM e agora dedica duas horas por semana para um trabalho no bairro onde mora. Essa territorialização do cuidado foi fundamental, pois permitiu que o tratamento fosse integrado à sua realidade, considerando sua família, sua comunidade e seus desafios sociais. O plano de cuidado, desde o início com foco na abordagem baseada em forças, ajudou Maria a identificar suas próprias potências e recursos para que a recuperação pudesse florescer, e não ficassem aparentes somente suas dificuldades e sintomas.

Maria aprendeu a reconhecer os sinais de alerta, a construir uma rede de apoio sólida e a buscar atividades que lhe traziam bem-estar, reconectando-se com seus valores. A dignidade de seu tratamento, a liberdade de escolha em seu processo e o respeito aos seus direitos como cidadã foram a base para a promoção da sua recuperação.

Olhando para o Futuro: Nosso Compromisso com a Atenção Psicossocial

A reforma psiquiátrica brasileira é um legado de humanidade e um convite contínuo à reflexão crítica sobre a saúde mental em nossa sociedade. É uma luta que se renova a cada dia, para garantir que a liberdade e a dignidade não sejam apenas palavras, mas princípios que moldam cada atendimento, cada política pública e cada relação de cuidado, mesmo entre pares, de modo que possamos quebrar as paredes dos manicômios que existem dentro de nós mesmos.

Espero que este texto tenha validado seus sentimentos e te convidado a algumas reflexões. Seu engajamento é fundamental para fortalecermos essa rede de apoio e informação que pode fazer a diferença na vida de tantas Marias, João, José e Anas por aí. 

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